terça-feira, dezembro 11, 2007

1.º lugar do pódio - Amelinha



O Dia da Minha Morte

Acordou com a cara molhada e levou imediatamente as mãos aos olhos para os limpar. Ainda perdida naquela languidez natural dos primeiros minutos de consciência, percebeu que chorava e sorria ao mesmo tempo. Não era a primeira vez que via assim tudo tão nítido, tão real. Já o tinha projectado acordada, uma, e duas e muitas vezes. E aí sim, era completamente manipulável. Resistia ao choque, colocava este e aquele um pouco mais infidavelmente infelizes e desconstruia tudo logo a seguir. Choravam todos, alguns até pareciam despedaçados. Vestiam de negro e mantinham os óculos escuros na cara. Havia flores e aquele cheiro nauseambundo, como num funeral normal. E depois eles iam para casa e viviam as suas vidas normais. Não lhes fazia falta. Não lhe sentiam a falta. Tudo era igual ao que sempre era. Com a diferença que perderam um ou dois dias de trabalho em convivio social na cave da igreja. Esteve lá o padre, elas levaram as violas e conseguiram entoar um cântico como antigamente e naquelas horas foram amigos todos outra vez. Confortaram a minha mãe, pobre mãe. Preocupada com os meus filhos e com os filhos deles, ficou viúva e orfã e desamparada e tudo ao mesmo tempo. Ainda bem que morri primeiro. O pior de tudo deve ser perder um filho, não é mãe?
Ainda de olhos fechados, recordei aquele tormento que é ter um filho. Será mais doloroso tê-lo ou perdê-lo. Um doi de morte. O outro não quero nem saber. Ela disse-me antes de ir para a maternidade e é verdade. "Agora, vais ver o que é amor de mãe!" Disse-o quase como quem diz, "come que te faz bem!", ou "agasalha-te que arrefece!". Disse-o porque sabia que era dona dessa verdade e que era a melhor coisa que me poderia dizer naquela altura. Como se me quisesse aliviar as dores, como se me quisesse fazer crer que se pudesse tinha ela as contracções por mim. A verdade é que, depois daquele tormento, esgotada, infeliz, dorida, assustada... depois disso tudo eu percebi finalmente o que aquelas palavras queriam dizer. Mas vale de quê? Eles depois fazem-se, criam laços, querem ser independentes e procuram o oposto do que lhes queremos dar.
Foi isso que aconteceu comigo e no dia em que quis voltar atrás já estava lá a distância quase impossível de ser percorrida. E, quando isso acontecia, quando acontecia visualizar aquele momento de dor tinha pena da mãe, de não lhe ter dado mais e ainda por cima ter-lhe causado aquele desgosto.
Ali estava ela. Parecia sincera. Eu sabia que ela estava a ser sincera. Se havia alguém que me podia chorar era ela. Era também por isso que, mesmo não comendo nada nos dias seguintes, se preocuparia em que nenhum deles se acomodasse à fome. Serviria-lhes qualquer coisinha, uma canja, ou algo mais saboroso. "E se fizesse um frango de fricassé?" Alguém encolheria os ombros na secreta esperança que estivesse a falar a verdade, mas no descaso não se sentisse obrigado ainda a descacar batatas para fritar. Viriam todos para a mesa à hora certa, que naquela casa sempre se comeu a horas, ou até um bocadinho antes, para à hora se estar em frente à televisão. No tempo do meu pai, cada um via o que queria. Cada quarto tinha uma televisão. Invarialvelemente ele ficava na sala, no seu lugar ao sofá, comando na mão a mudar entre os três canais de desporto que tinha. Ela acabava por ficar no banco duro da cozinha, porque se sentasse comodamente o sono vinha mais depressa e não apanhava nada do episódio da telenovela. Gostava de acompanhar os dramas exagerados das personagens mal interpretadas daquilo a que um dia chamaram a ficção portuguesa. Eu acabava por lhe perguntar de passagem quem é que encornava quem (porque sabia que tinha de haver sempre um corno e isso era talvez o que poderia dar um toque de realidade áquilo), ela até se entusiasmava a dizer que fulano gostava de sicrano mas este era um grandessissimo filho da mãe que só queria putas e moinice. Claro que ela não usava estes termos. Eu é que tentava apimentar a coisa para a tornar um pouco mais ordinária. Mas ela não ia em cantigas e mudava de mão de apoio à cabeça descaída. Se pasasse lá a seguir já estava de olhos fechados e se lhe perguntasse, asseguraria que estava a ouvir, só descansava os olhos.
Foi numa dessas noites, nesses encontros tardios na cozinha da sua casa, numa altura em que regressei e vivi lá uns meses, que vi uma cena de um funeral numa daquelas telenovelas que me transportou para o meu. Ela levantou-se para me oferecer algo, não podia deitar-me de estômago vazio e com o copo de leite na mão eu subi ao cimo daquele núvem, como fazia na minha adolescência, e fiquei a ver a cena cá em baixo. Dei-lhe uma desculpa qualquer para não comer a torrada e enfiei-me no meu quarto para poder viver aquele momento como ele merecia ser vivido, com toda a pompa e circunstância.

(continua, um dia)

29 comentários:

Maura disse...

Eu avisei para se prepararem para as pérolas dos nossos vencedores do concurso!

Os 2.º e 3º lugares serão publicados ainda esta semana.

Lucia disse...

E quanto a mim e quanto à vida? Estrangulem-me, pitões, desprovidas da carne da eternidade. Anéis de lodo, dado que o dia é longo, o desespero distingue-se a si mesmo na extinção. Desta espécie especial. Gente de pedra. Os escritores escrevem sobre nós. Pertenço a um livro. Não à vida. Onde nada tem sentido. Onde é que pertenço?

O Inferno dos Sonhos, Oliver Stone

PAC disse...

Fiquei absolutamente fã desta Amelinha. Ainda pra mais escolheu um desenho do explodingdog. Muito bom gosto. Os meus cordiais Parabéns.

SUSHISTICK disse...

Pois eu não percebi nada desta lógica concursóide, cheguei agora e gostei. Post pujante, vertical, com uma leve distância (e "nojo") da realidade.

Continua, pois! :)

inesinho disse...

Caramba, isto sim, é um post a sério e empenhado! E adoro o desenho.

LuisElMau disse...

Muitos Parabens Amelinha, está forte, bonito, bem escrito, profundo. Continua pois claro.
Como já foi dito por aí o desenho é bem escolhido, mas o que me tocou mais foi a escrita, não só a história, que por um lado poderia ter sido levada para algo muito mais dramático e não foi, mas o ritmo da escrita, a melodia. Está belo Amelinha, muitos parabêns. De longe algo com muito mais valor que o meu singelo texto.
Olha de tal maneira que acho que te vou eu mesmo oferecer uma caixa de cotonetes.

amelinha disse...

Começo a corar.
Obrigado pelos elogios, vou leválos como um incentivo a escrever mais umas linhas.
Para que saibam, este texto não foi escrito para este concurso (fiz um bocado de batota, eu sei). Já estava escrito e guardei-o como esboço de algo que poderia ser o início de outra coisa qualquer.
Quando lançaram o repto e percebi que não tinha muito tempo para pensar nele, eu, Amelinha a comodista fui ao baú e mandei este texto.
Nem corrigido está. Começa na terceira pessoa e passa para a primeira. Mas pronto.

Maura, se escrever mais contrato-te.

A todos obrigada pelas palavras, vou levá-las como um incentivo.

PS: a Su manda esta mensagem:
se fores ao blog dos UD's, põe um comment, com o meu mail correcto:
Susana.Oliveira-EXT@solvay.com
Diz-lhes, que iniciaste uma nova rubrica,
que se denomina UD, preciso de Ajuda!
As repostas deverão ser encaminhadas,
para o meu mail...LOL

ajudem esta pobre coitada!

World without end disse...

Er... é mau dizer que hj o amiguinho vai estar a passar musiquinha manhosa dos anos 80 no Mexe Caphé outra vez?
A Maura disse que era capaz de ir... vão também, não me deixem sozinho... snif, snif...

:P

Anónimo disse...

Amelinha, parabéns pela tua escrita. Acho bem que não guardes na gaveta aquilo que te vai na alma. Não faças como muita gente parva que por aí caminha que esconde tudo a sete chaves ;)
Quanto à frase "Será mais doloroso tê-lo ou perdê-lo." (que não sei se é interrogativa e te falhou ou se é mesmo declarativa), posso dizer-te (experiência própria) que é mais doloroso perdê-lo. A primeira dor tem uma justificação quer a encontres ou não. A segunda não tem. Uma dor assim não tem limites.
Mais uma vez, parabéns!
kisses
music

P.S. O desenho está soberbo! Estas figuras são-me familiares, mas não me lembro do nome deles :(

Anónimo disse...

Ok fui ao meus favs e descobri: o desenho é de Sam Brown. Exploding dogs inspirado nos cães soviéticos que faziam explodir aqueles carros de guerra (não sei o nome, só me lembro de lagartas)?!! É isso? Estes desenhos são o máximo! Again and again, parabéns pela escolha!
kisses
music

Maura disse...

A Amelinha vai para o meu top de revelação do ano!
Vamos todos oferecer-lhe cotonetes!
Amelinha, força a escrever, fico à espera que me contrates ;)

Vamos todos ao Mexe às 24h comemorar a ressureição do meu carro?!

World without end disse...

Vamos sim! Aparentemente, o tipo que lá tá a meter som é um génio, e passa as músicas que lhe pedem ( se ele as tiver, claro está...)!

:D

amelinha disse...

Infelizmente (ou felizmente) hoje não posso "mexer-me" para sair de casa. Bebam um copo por mim.

Music: obrigada pelas tuas palavras. sim era uma interrogação aquela frase. às vezes levo-me pelo entusiasmo a escrever e fico tipo Amelinha Saramago. Acho que as palavras por si já contém suficiente entoação e não precisam de pontuação.

De qualquer forma, sim, acredito plenamente nas tuas palavras. Não quero sequer imaginar. Deve ser preciso muita força interior para ultrapassar uma perda dessas...

Não tenho guardado as emoções dentro de um baú. a única diferença, não sei se é boa se é má, é que agora converso mais do que escrevo. Mas estas vossas palavras deixam-me entusiasmada :)

Lucia disse...

Maura,

ainda bem que já tens carro! bebe uma coca-cola por mim :) tou mais que exausta para me atrever a sair do meu antro.

Amelinha,

espero ansiosamente pelas próximas palavras, foi deliciosamente UD :) escrever é bom, mas curiosamente por muito que evite conversar sobre determinadas coisas, acabo sempre por sentir menos o peso delas.

Jack Hawksmoor disse...

Olha, e isto era um concurso de quê, mesmo? É que se quiseram ler algo repleto de alegria, podem fãze-lo aqui!

PAC disse...

O desenho da Amelinha é do projecto explodingdog. Sou grande fã devoto há muito tempo. Experimentem enviar-lhe um título para o email e com sorte talvez Sam Brown vos faça um desenho sugestivo.

Music: Acho que “aqueles carros de guerra” que não sabes o nome porque só te lembras das lagartas chamam-se… tanques. ;)

Jon snow: podes ler o concurso => aqui <=

World without end: vê lá se desta vez passas Modern Talking. É só grandes clássicos dos 80's!

Maura disse...

Amelinha, espero que não deixes de conversar para retomar a escrita! Tens é que encontrar o equilíbrio entre ambas as duas juntas.

Pá, encontrei um single de Modern Talking em binílio! Bou comprá-lo e leiloá-lo aqui! Tá feito!

amelinha disse...

epá... por um prémio desses escrevo uns 3 livros ;)

World without end disse...

Epa, Modern Talking em vinyl?? Show it to us, precious!!

PAC disse...

trespasso-te os 50% aqui do estaminé em troca desse vinyl.

World without end disse...

Eu faço um set privado só para TI e escrevo uma belíssima melopeia em tua homenagem, se esse single vier parar ás minhas mãos!

:P

Pac : o link não funciona, mano...

PAC disse...

Raios partam aos links. Mas porque é q não sou informático para perceber destas coisas?!

Cá vai outra vez para os interessados:

Link Exploding Dog

Link 1º concurso UD

Maura disse...

Estão a gozar, right? Vou já buscá-lo amanhã e quero um Smart em troca, boa?

World without end disse...

Smart? Me am smart! Duuuuuh...

Anónimo disse...

pac,
lol é isso mesmo, tanques!!!
Enviei uma frase:
I hate to feel the cold in my ears.
Será que ele desenha algo para mim?
É que eu já tenho um desenho para esta frase :)
kisses
music

Anónimo disse...

o que é mesmo preciso é viver para que estas coisas nos saiam assim das "entranhas". Sem palavras difíceis e sem grandes artifícios de escritas. simplesmente saiam. despretenciosamente. São sentimentos que ainda não entendo. Não acrescentando nada de mais. Não sou inspirada.

Anónimo disse...

e como é que uma suposta revisora linguística comete erros ao escrever num blogue???
o degredo apodera-se de mim a cada minuto.
Vou cortar os pulsos ao som de She makes me wanna die... que já me dói a cabeça de chorar.

Maura disse...

Não sei se já tinha dito que me apaixonei pela Amelinha! Porque é que me apaixono sempre por quem escreve bem?

amelinha disse...

assim pões-me corada!