Quem Mora na Minha Cabeça?

«Eu sou o anjo do desespero.
Das minhas mãos distribuo a embriaguês,
a estupefacção, o esquecimento, gozo e tormento dos corpos.
Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito.
À sombra das minhas asas mora o terror.
Minha esperança é o último suspiro.
Minha esperança é a primeira batalha.
Eu sou a faca com que o morto arromba o seu caixão.
Eu sou aquele que será.
Meu descolar é a sublevação, meu céu o abismo de amanhã.»

Anjo do Desespero, Heiner Müller

«Müller no Hotel Hessischer Hof» foi um espectáculo criado pelos Mão Morta tendo como ponto de partida a manipulação mórbida de poemas do dramaturgo alemão Heiner Müller. Talvez tenha sido a partir daqui que em Portugal nasceu a vontade de musicar palavras de outros escritores.
Foi em 1997 que o espectáculo esteve em cena e, apesar de ter inspirado ideias idênticas noutras bandas/artistas, parece-me que ainda não foi superado, talvez pela intensidade e coerência que caracteriza os Mão Morta... Sem esquecer que Adolfo Luxúria Canibal é inimitável e insuperável:



Esta noite atravessava uma floresta a sonhar
Ela estava cheia de horror. Seguindo a cartilha
Os olhos vazios, que nenhum olhar compreende
Os bichos erguiam-se entre árvore e árvore
Esculpidos em pedra pelo gelo. Da linha
De abetos, ao meu encontro, através da neve
Vinha estalando, é isto um sonho ou são os meus olhos que a vêem,
Uma criança de armadura, coiraça e viseira
A lança no braço. Cuja ponta faísca
No negro dos abetos, que bebe o sol
O último vestígio do dia uma seta de ouro
Atrás da floresta do sonho, que me faz sinal de morrer
E num piscar de olho, entre choque e dor,
O meu rosto olhou-me: a criança era eu.